A subalterna rompe o silêncio

Amanda da Cruz Costa
6 min readFeb 23, 2020

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“Há um medo apreensivo de que, se o sujeito colonial falar, o colonizador terá que escutar. Ele seria forçado a um confronto desconfortável com as verdades. (Grada Kilomba, 2012).”

Esse texto é um DESABAFO!

A minha voz, em todas as suas dialéticas, foi silenciada por muito tempo. Pretendo utilizar esse espaço para violar e transcender a autorização discursiva branca, masculina cis e heteronormativa, com o intuito de debater como as identidades que fogem desse padrão estão sendo marginalizadas e oprimidas.

Meu desejo é desestabilizar a epistemologia dominante. Quando pessoas negras reivindicam o direito a voz, elas estão reivindicando o direito a própria vida!

Vou te contar uma história.

Era uma vez, uma menina preta da periferia, que aprendeu a ser muito determinada, esforçada e estudiosa, para que assim pudesse quebrar o ciclo de escassez e trazer melhorias para os seus semelhantes.

Essa menina cresceu, alcançou notoriedade e no segundo semestre de 2019 foi selecionada para participar de um programa de aceleração para jovens talentos. O programa é incrível, mas infelizmente reflete a lógica racista e opressora de um país fundamentado numa estrutura branca e escravocrata.

Em um grupo com cerca de 20 jovens, apenas 2 eram negros. Até então OK, a jovem estava acostumada a lutar para inverter esse padrão social dominante. Mas o que ela não aceitava é a constante reprodução do racismo, onde pessoas brancas se colocam em posições de poder e dominação pelo simples medo de perderem privilégios.

“É necessário que homens brancos parem de se pensar universais e se racializem para entender o que significa ser branco como metáfora de poder.”

A jovem sou eu! Entendi que é necessário me expor para acelerar as mudanças.

Bom, o programa de capacitação promove vários encontros, entre eles há um Workshop de Comunicação, com 3 dias de duração. O conteúdo do treinamento foi ótimo, misturou teoria com prática e todos os jovens tiveram a oportunidade de se apresentar e receber feedbacks.

No meu momento, trouxe a seguinte narrativa:

“Olá! Meu nome é Amanda, sou estudante de Relações Internacionais, empreendo o Climathon Brasil, co-coordeno o Grupo de Trabalho sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Engajamundo e faço parte do Youth Climate Leaders e do Global Shapers. Mas isso não é o que sou, isso é o que eu faço. Eu sou uma menina preta da periferia e entendi que o lugar que mereço estar é o lugar que eu decidir ocupar!

“É necessário ressaltar a importância de mulheres negras se auto definirem. A autodefinição é uma estratégia de enfrentamento a visão colonial.”

Após essa introdução lacradora, compartilhei meu propósito e disse o porquê eu faço o que faço. Foi maravilhoso, a galera ficou impactada e inspirada! Recebi feedback verdadeiro e pude visualizar quais eram os pontos de melhoras em meu discurso.

Estava tudo lindo e arrasador, no entanto, a ajudante do facilitador me chamou de canto e disse baixinho:

Querida, vou te dar um feedback do coração e saiba que só vou falar porque gostei muito de você. Eu prefiro que você evite dizer que é uma mulher “preta da periferia”, pois isso me incomoda. Acredito que da mesma forma que me senti desconfortável, outros também não gostem. Da para ver que você tem um futuro brilhante pela frente, e pode ser que pessoas importantes se sintam incomodadas com seu discurso. É melhor você não abordar esses pontos, ok?

Eu fiquei chocadíssima, indignada, petrificada!

Não estava acreditando no que tinha acabado de ouvir!!! Como ela teve a pachorra de me falar algo tão maldoso e doloroso? Eu respirei profundamente, pedi MUITA PACIÊNCIA para o Espírito Santo e disse com uma expressão bem séria:

Olha, eu respeito a sua opinião, mas não concordo. Estou acessando novos espaços justamente por me afirmar como mulher preta da periferia. Foram 454 anos de escravidão e muita gente branca sem noção continua perpetuando esse racismo. Basta olhar para a turma: quantas meninas negras participam do programa? Pois é, eu sou a única! E se eu não abordar essa questão, quem vai?

Ela respondeu:

Ah, ok. Eu só falei para o seu bem. Me dá um abraço?

EU QUERIA ARRANCAR A CABEÇA DELA E ELA ME PEDE UM ABRAÇO???

Depois que ela foi embora, eu fui correndo falar com o Rafa (meu amigo homoafetivo que suuuuper entende de opressões). Recebi um abraço apertado e desabei, chorava de soluçar, senti raiva, incredulidade, solidão e tristeza.

Confesso que fiquei chateadíssima! Não entendi os argumentos incoerentes usados para justificar o incomodo. Mas agora, depois de estudar Negritude e Lugar de Fala, entendi parte do desconforto: estou invertendo o paradigma do “lugar da mulher negra”!

Na estrutura capitalista, quem possui o privilégio racial possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado está centralizado na figura do homem branco. Qualquer ator social que foge desse padrão causa estranhamento e desconforto (Djamila Ribeiro, 2017).

Independente da exposição, decido continuar lutando para romper com o discurso hegemônico branco normativo!

SE A VIDA TE DER LIMÕES, ESPREMA NOS OLHOS DA INIMIGA

UAHSUHASHHSAU, brincadeira galera, #paz sempre. Maaaaaaaaas, estou aprendendo a usar as minhas experiências para ampliar o debate e trazer mudanças.

Decidi compartilhar minha história para que essas atrocidades não se repitam. Escolho ser porta-voz do povo preto, combater as desigualdades sociais e me rebelar contra o sistema patriarcal capitalista de supremacia branca.

Meu propósito não é impor uma epistemologia da verdade, mas desejo contribuir com o debate evidenciando a minha perspectiva. Como mulher negra da periferia, resisto e reexisito como estratégia de sobrevivência.

“Sendo a linguagem um mecanismo de manutenção do poder, precisamos priorizar o discurso e abrir espaços de fala para os grupos marginalizados.”

Pessu, todas as pessoas possuem lugares de fala, ou seja, uma localização social. A questão é: indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social precisam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar, e como esse lugar impacta diretamente a constituição dos lugares dos subalternizados.

Bora ser sincerxs:

Você acha que, numa sociedade suprematista branca e patriarcal, mulheres brancas, mulheres negras, homens negros, pessoas transsexuais, lésbicas, gays, podem falar ao mesmo modo que homens brancos cis heterossexuais?

Infelizmente, falar de racismo, opressão e gênero, ainda é visto como algo chato, “mimimi” ou outro adjetivo usado para deslegitimar o debate. A tomada de consciência sobre o que significa desestabilizar a norma hegemônica é vista como inapropriada ou agressiva, porque ai se está confrontando o poder.

“O compartilhamento da minha experiência é um chamado à reflexão: pensar lugar de fala é romper com o silêncio instituído para quem foi subalternizado, um movimento no sentido de romper com as hierarquias violentas.”

Meu falar não se restringe apenas ao ato de escrever, mas a poder existir. Sei que existe um olhar colonizador sobre o meu corpo, saber e produção, por isso MILITO e ME AFIRMO como sujeito político que luta com uma narrativa contra-hegemônica! 👊🏾

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Referências:

Livro Lugar de Fala — Djamila Ribeiro

Amanda Costa é internacionalista, liderança jovem e atuante em temas globais. Formada em Relações Internacionais pela UAM, empreende o Climathon Brasil, o PerifaSustentavel, coordena o Grupo de Trabalho sobre os objetivos de Desenvolvimento Sustentável (GT ODS) no Engajamundo e participa redes Global Shapers Community, United People Global e Youth Climate Leaders.

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Amanda da Cruz Costa

#ForbesUnder 30 | Conselheira Jovem da ONU | Dir. Executiva do Perifa Sustentável